Além da Justiça - O caso dos denunciantes invejosos

Luís Laércio Fernandes Melo (*)

 
 

Não. Não se trata de um estudo sobre a célebre obra de AGNES HELLER ou ainda da novela jurídica de DIMITRI DIMOULIS, mas de uma “fake hard case” que vem se desenhando, com aspectos de dramaturgia, entre membros do Ministério Público acerca da continuidade do pagamento de parcela de remuneração de Adicionais por Tempo de Serviço (ATS), direito este reconhecido pelo Conselho Nacional do Ministério Público ou (conjunção alternativa) aprovação de um projeto de lei que reestrutura a organização do Ministério Público do Estado do Ceará, à cavalo, do Projeto do Poder Judiciário que já foi aprovado pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará.

Parece courtroom  americana: MP(ATS) vs. MP(reestruturação). A tristeza que emerge dessa luta interna é que a autonomia do Ministério Público está sendo negociada (não sei se por meio de um plead bargain), onde se está escolhendo qual a medida de menor potencial ofensivo para os cofres do Estado.

Quando se pensa exorcizado o maniqueísmo do “é assim ou assado”, no âmbito do Ministério Público, o fogo-fátuo reluz sob as falsas vestes de interesse público. É mais importante reestruturar o órgão de que pagar “essas indecorosas verbas de ATS”, dizem alguns. Esse jogo não é um a um, como diria “Jakcson do Pandeiro”. 

Fundamentalismo às avessas. Xiitismo contra a autonomia do MP.

Parece que os ATS instilaram ódio e inveja na veia de alguns operadores jurídicos que não admitem ganhar menos que Promotores de Justiça. Até parece que ganhar mais é uma espécie de elixir de poder. O pensamento é assim: Estou sendo humilhado ao estar sentado ao lado de alguém que ganha mais que eu. Mal aventurados os pobres em espírito, já que os pobres de espírito se acham consolados pelo grande amigo e mestre Jesus Cristo.

Com profunda consternação é que observo que esse influxo de inveja fez amarelar o Ministério Público que ao retroceder, inconscientemente, (prefiro recorrer à figura do eufemismo), abre mão de uma conquista histórica que se acha grafada na Constituição Federal há mais de vinte anos: A AUTONOMIA.

A demonização do Ministério Público é proporcional à deificação do Judiciário. Talvez seja a lógica hegueliana : não existe bem sem mal, yang sem ying,, senhores e escravos, opressores e oprimidos, comandantes e comandados, susseranos e vassalos, ou num linguajar bem coloquial: “alguém tem que pagar o pato”. Pena que a ave seja o Ministério Público. Pobre demiurgo é o MP.

O que pode acontecer se trocarmos os ATS pelo super, hiper, mega projeto de reestruturação? O Governo pode soltar  um pouco mais de linha para que a pipa alce vôos centímetros acima da planície, sob os olhares atentos do Parlamento que possui afiado cerol para cortar o nosso orçamento, para isso existem emendas aditivas e supressivas.

A crônica, com a devida vênia, aqui vale o prolóquio “mutatis mutandis”, pelo amor de Deus, me faz lembrar conto de NELSON RODRIGUES, no livro “A CABRA VADIA” sobre a morte de um cachorro vira-lata:

“Lembro-me de uma crônica que li não sei onde, nem sei quando.Escapa-me também o nome do autor. Se não me engano, era brasileiro. Não, não era brasileiro. E o assunto era a influência da distância nas leis da emoção. Vejamos o que dizia o cronista. Dizia que um atropelamento de cachorro na nossa porta, pelo fato de ser na nossa porta, teria mais apelo emocional do que Hiroshima.

Sabemos que, em Hiroshima, morreu um mundo e nasceu outro. A criança de lá passou a ser cancerosa antes do parto. Mas há entre nós e Hiroshima, entre nós e Nagasaki, toda uma distância infinita, espectral. Sem contar, além da distância geográfica, a distância auditiva da língua. Ao passo que o cachorro é atropelado nas nossas barbas traumatizadas. E mais: - nós o conhecíamos de vista, de cumprimento. Na época própria, víamos o brioso vira-lata atropelar as cachorras locais. Em várias oportunidades, ele lambera nossas botas.

E, além disso, vimos tudo. Vimos quando o automóvel o pisou. Vimos também os arrancos triunfais do cachorro atropelado. Portanto, essa proximidade valorizou o fato, confere ao fato uma densidade insuportável. A morte do simples vira-lata dá-nos uma relação direta com a catástrofe. Ao passo que Hiroshima, ou o Vietnã, tem, como catástrofe, o defeito da distância”.

Genial. Como esse Nelson faz falta!

Disseram-me, não sei onde, mas acho que ouvi. Aliás, ouvi que não será garantido orçamento para pagamento dos ATS, no próximo ano (que forma mais elegante de descumprir as decisões do CNMP!), só assim, a reestruturação do Ministério Público desempaca. 

Não assino qualquer manifesto que ponha em xeque a autonomia do Ministério Público. Prefiro, em nome de minha instituição não me submeter a vergonha da escolha. Prefiro a derrota no tablado, a ganhar por W.O.

 
 

(*) Luís Laércio Fernandes Melo é Promotor de Justiça em Fortaleza.