Estando comprovado, mediante laudo pericial idôneo, a existência de sons, ruídos ou vibrações acima dos permissivos normativos e regulamentares, provocados por abusos de instrumentos sonoros ou sinais acústicos, comuns em bares com música ao vivo, casas noturnas, boates, festividades ao ar livre, etc, qual seria tipificação penal correta para tal hipótese ?
A hipótese é de comum ocorrência. Somente na grande São Paulo são registradas por mês cerca de 2.200 ocorrências relacionadas à poluição sonora.
Na verdade, desde a década de 40, vem sendo a poluição sonora motivo de preocupação, tanto é que o Decreto-lei nº 3.688/41, ao instituir a Lei das Contravenções Penais em seu artigo 42, assim dispôs:
- Art. 42. Perturbar alguém o trabalho ou o sossego alheios:
- I – com gritaria ou algazarra;
- II – exercendo profissão incômoda ou ruidosa, em desacordo com as prescrições legais;
- III – abusando de instrumentos sonoros ou sinais acústicos;
- IV – provocando ou não procurando impedir barulho produzido por animal de que tem guarda.
- Pena – prisão simples, de 15 dias a 3 meses, ou multa.
Conquanto seja posição minoritária na jurisprudência e na doutrina, se tem visto o enquadramento desse tipo de poluição como crime ambiental, isso em razão de estudos sobre os efeitos maléficos da poluição sonora sobre a saúde humana e das assustadoras fontes que a origina.
Para alguns, poluição sonora simplesmente é “poluição”; como tal objeto da tutela penal prevista no artigo 54 da Lei nº 9.608/98:
- Art 54. Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora:
- Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa.
Esse posicionamento, como regra, nos parece equivocado, não obstante o pensar de renomados ambientalistas.
De início, cumpre frisarmos que o enquadramento da poluição sonora como crime foi objeto da tutela penal no Anteprojeto da Lei nº 9.605/98, que, em seu artigo 59, especificamente tratava do assunto, incriminando a seguinte conduta:
- Art. 59. Produzir sons, ruídos ou vibrações em desacordo com as prescrições legais ou regulamentes, ou desrespeitando as normas sobre emissão ou imissão de ruídos e vibrações resultantes de quaisquer atividades.
- Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
Referido dispositivo foi vetado pelo Presidente da República, constando em suas razões:
“O bem juridicamente tutelado é a qualidade ambiental, que não poderá ser perturbada por poluição sonora, assim compreendida a produção de sons, ruídos e vibrações em desacordo com as prescrições legais ou regulamentares, ou desrespeitando as normas sobre emissão e imissão de ruídos e vibrações resultantes de quais atividades.
(...)
Tendo em vista que a redação do dispositivo tipifica penalmente a produção de sons, ruídos ou vibrações em desacordo com as normas legais ou regulamentares, não a perturbação da tranqüilidade ambiental provocada por poluição sonora, além de prever penalidade em desacordo com a dosimetria penal vigente, torna-se necessário o veto do art. 59 da norma projetada.”
Como visto, a vontade primária do legislador era incriminar a poluição sonora, mas não como um crime apenado com reclusão, de um a quatro anos (artigo 59). Não. O intuito do legislador – e se não fosse o veto, deveria ser respeitado – era reprimir a poluição dita “sonora”, como sendo uma infração de menor potencial ofensivo, na medida em que a repressão era de detenção, de três meses a um ano, e multa.
Ocorreu o veto. Não integrou aquele tipo (artigo 59), portanto, o ordenamento jurídico penal. Será possível, agora, enquadrar a poluição sonora como crime, objeto da tutela penal cogitada no artigo 54 da Lei 9.605/98? Temos a impressão não ser esta a melhor interpretação.
Para delimitar o real sentido da lei, o interprete tem, muita das vezes, que se valer do elemento histórico, isto é, verificar as razões históricas motivadoras da norma. É a interpretação histórica em cena, que nas letras do insigne jurista Paulo Dourado de Gusmão, “consiste na interpretação fundada em documentos históricos do direito. Muitas vezes se serve nessa interpretação histórica dos chamados trabalhos preparatórios, isto é, dos projetos de lei, debates nas comissões técnicas das assembléias e no plenário das mesmas, pareceres, emendas e justificações dos mesmos”. 1
- Nesse sentido, lembra-nos o eminente Professor José Flóscolo da Nóbrega, em inesquecível obra, que “o elemento histórico é fornecido:
- a) – pela história do direito anterior, especialmente a do instituto de que faz parte a lei;
- b) – pela occasio legis, os fatos e circunstâncias que deram causa à lei;
- c) – pelos trabalhos preparatórios, ou seja, os projetos e anteprojetos, as emendas, os pareceres, relatórios e exposição de motivos, os votos e discursos proferidos nas câmaras legislativas, ao discutir-se e votar-se a lei”. 2
Penso, pois, que nunca foi intenção do legislador apenar a poluição sonora com uma reprimenda máxima de 04 anos de reclusão. Nesse tipo de poluição, optou por esgotar os meios menos lesivos para proteger penalmente o meio ambiente, como bem jurídico. Criou, então, um tipo específico, o qual restou vetado. Preferiu, assim, sanção bem menos severa daquela tipificada no art 54 da vigente Lei Ambiental.
E não fosse o veto presidencial, entendemos que andou bem o legislador.
Como se sabe, compete ao legislador valorar os bens que estão sendo objeto de proteção pelo Direito Penal, individualizando as sanções conforme a sua importância e gravidade.
Pelo principio da proporcionalidade não se aceita o estabelecimento de sanções penais que não guardem adequação com o fato incriminado e que causem afronta a direitos fundamentais. Todo legislador, portanto, deve criar penas relativamente proporcionais a gravidade do crime.
Nesse horizonte, debruça-se a mestre Mariângela da Gama de Magalhães Gomes, para quem “a própria intensidade do perigo oferecido ao bem jurídico também há de ser valorada no momento da cominação legal da pena, de modo que na incriminação seja considerado, igualmente, o grau de aproximação à efetividade do dano para a delimitação das margens penais”. 3
Com efeito, a poluição sonora não pode ser equiparada com a poluição atmosférica, que, paulatinamente, provoca o aquecimento global, o efeito estufa, o buraco na camada de ozônio entre outras conseqüências. Também não podemos compará-la com a poluição do solo e com a poluição hídrica, que enseja danos irreparáveis ou de difícil reparação. Imagine-se, por exemplo, a contaminação tóxica de um lençol freático ou de uma baía, comprometendo significativamente a sua fauna.E o que dizer dos lixões químicos industriais que tornam absolutamente impróprios os solos?
Situação bem mais controlável é a daqueles que, abusando dos decibéis permitidos, promovem, de alguma forma, barulho e algazarras festivas. A mim parece ser uma situação bem mais fácil de ser debelada, bastando para tanto que a autoridade policial seja acionada, hipótese em que se lavrará o competente termo circunstanciado de ocorrência, com o encaminhamento do autor da infração para o Juizado Especial Criminal, onde será processado na forma da Lei nº 9.099/95.
Registre-se, ainda, que todo indivíduo que se sentir incomodado em seu sossego, através de algazarras e barulhos provocados por outrem, poderá, também, valer-se da ação cominatória, consistente em obrigação de não fazer, podendo inclusive requerer o pleito em forma de tutela antecipada, porventura faça prova pré-constituída de seu direito, mais um mecanismo judicial que dispõe para fazer cessar o dano, sem prejuízo da configuração do ilícito contravencional.
Não nos parece, portanto, que pelo simples fato de alguém ter extrapolado os decibéis acima dos níveis permitidos, tenha possibilitado causar danos à saúde humana, mesmo porque a nocividade da poluição sonora que se tem afirmado, cientificamente, como prejudicial à saúde humana, é aquela que expõe o individuo diariamente a suportá-la.
Com essas colocações, estou em que no tema em comento, a intervenção penal apresenta-se de forma bastante proporcional ao valor que se objetivou preservar. No âmbito do direito penal, o legislativo bem respeitou o princípio da proporcionalidade. E o poder executivo, por sua vez, através do veto, foi mais além, deixando bem claro que a repressão à poluição sonora mostra-se suficiente como contravenção penal.
Não negamos, aqui, a nocividade da poluição sonora. Estudos bem revelam os sérios problemas, mormente de ordem neurológica, que esse tipo de poluição provoca no homem. A própria Organização Mundial de Saúde já priorizou a questão, a ser tratada como uma das três prioridades ecológicas para as décadas vindouras.
Entretanto, pensamos que, no momento, a poluição sonora não poderá sair das raias da contravenção penal, que a define como perturbação ao trabalho ou ao sossego alheio (Decreto-lei 3.688/41, art. 42 e incisos), salvo como lembram os festejados Vladimir Passos de Freitas e Gilberto Passos de Freitas, “em casos extremos de comprovado dano à saúde humana”, que, a nosso aviso, é difícil ocorrência e comprovação. 4