INTRODUÇÃO
Muito tem se discutido no âmbito do Ministério Público cearense sobre os aspectos existenciais legais do cargo de Promotor de Justiça Militar.
Embora o mencionado cargo tenha sido criado há bem mais de meio século, muitos membros do Parquet alencarino resistem em aceitá-lo no seio da instituição. Sustentam, dentre outros argumentos, que o atual Promotor de Justiça Militar não prestou concurso público de ingresso na carreira ou, ainda, o fato da lei instituidora do cargo haver sido editada por iniciativa do Poder Executivo.
Não obstante as duas premissas anteriores sejam verdadeiras, a oposição parece assumir contorno mais emocional (ou pessoal) que jurídico, posto que opta por desconsiderar normas constitucionais específicas, que afastariam, como de fato afastam, quaisquer dúvidas sobre a insustentabilidade da rejeição.
Demais disso, sendo o atual Promotor de Justiça Militar admitido a integrar o Ministério Público estadual, com o aproveitamento de todo o tempo de serviço, tornar-se-á o mais antigo Promotor de Justiça na carreira. Desnecessário dizer que, deste fato, resulta grave inconformismo sigilado.
O tema, como se observa, é deveras atual, notadamente porque o multicitado Promotor de Justiça Militar, nomeado em comissão nos idos de 1962, maneja Mandado de Segurança com o objetivo de passar a integrar a carreira, com aproveitamento de todo o tempo de serviço exercido desde então.
A medida heróica insurge-se contra a recusa dos órgãos da administração superior (Procurador-Geral, Conselho Superior e Colégio de Procuradores de Justiça) em promover a inscrição do atual Promotor de Justiça Militar, com a contagem de todo o tempo de serviço exercido no referido cargo, nas listas gerais de antiguidade (antiguidade na carreira e antiguidade na entrância) do Ministério Público do Estado do Ceará.
Neste contexto, a pretensão deste artigo é fazer breve análise histórico-legislativa do cargo, estendendo a discussão, para, ao final, apresentar a conclusão do autor, ciente do risco de polemizar.
BREVE EXAME DA LEGISLAÇÃO
O Cargo de Promotor de Justiça Militar foi criado na esfera do Poder Executivo Estadual pela Lei n° 2.038, de 11 de novembro de 1922.
Posteriormente, com a edição da Lei Estadual n° 2.141, de 08 de julho de 1924, o cargo foi extinto, sendo criado, em substituição, o cargo de Procurador da Justiça Militar, mantido na órbita do Poder Executivo, sendo atribuída ao seu ocupante a garantia da vitaliciedade, garantia esta que já era conferida ao Auditor e ao Escrivão da Justiça Militar, verbis:
Art. 1° - Fica extincto o cargo de Promotor de Justiça Militar, instituído pela Lei n. 2.038, de 11 de novembro de 1922.
Art. 2° - É creado o cargo de Procurador da Justiça Militar, no caracter de uma das autoridade militares judiciarias.
Art. 3º - O cargo de Procurador da Justiça Militar será vitalício, como já o são os de Auditor e Escrivão.
Art. 4º - Além das funcções do extincto cargo de Promotor, exercerá mais o Procurador da Justiça Militar os seguintes:
I – Officiar nos conflictos de jrisdição em que for parte a Justiça Militar.
II – Ser ouvido nos casos de concessão de menagem.
Conforme se observa, a mudança verificada foi basicamente de terminologia, vez que o Procurador de Justiça Militar recebeu a mesma incumbência do Promotor de Justiça Militar, qual seja, funcionar como órgão de acusação nos crimes militares da competência da Auditoria Militar. Continuou, desta forma, a exercer as mesmas atribuições que eram conferidas ao Promotor de Justiça Militar.
Por um longo período, de exatos trinta e sete anos, o órgão de acusação da Justiça Militar foi representado pelo Procurador da Justiça Militar, sem qualquer alteração legislativa em seu funcionamento e atribuições.
No ano de 1961, com a edição da Lei n° 5.524, de 30 de Agosto de 1961, que reorganizou a Justiça Militar, o cargo de Promotor de Justiça Militar foi novamente criado, em substituição ao cargo de Procurador de Justiça Militar, com previsão de provimento somente por ocasião da vacância deste último, que seria extinto na mesma oportunidade de sua vacância. Ocorreu, assim, modificação legislativa inversa àquela que fora operada pela Lei n° 2.141/24 em relação à Lei n° 2.038/22.
É a seguinte a redação da Lei n° 5.524/61, no que pertine ao tema, litteris:
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Art. 4° - A Auditoria Militar é regida por um Auditor, auxiliado pelos seguintes órgãos:
I - Um Promotor de Justiça Militar;
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Art. 10 – O Auditor da Justiça Militar será nomeado dentre bacharéis em direito com mais de dois anos de prática forense, tendo preferência os que vêm servindo na Auditoria como Promotor ou Advogado.
Art. 11 – O Promotor e os Advogados da Justiça Militar são livremente nomeados pelo Chefe do Poder Executivo, dentre os bacharéis ou doutores em direito, inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil.
Art. 13 - Ficam criados e lotados na Auditoria Militar os seguintes cargos:
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Um Promotor da Justiça Militar, isolado e de provimento efetivo, Padão Z da Escala Padrão constate da Taleba I, anexa à Lei n. 4.857, de 6 de Junho de 1960.
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§ Único - O cargo de Promotor da Justiça Militar somente será provido quando vagar o de Procurador da Justiça Militar.
Art. 16 - O cargo de Procurador da Justiça Militar será extinto quando ocorrer a sua vacância.
Art. 20 - O Promotor será substituído, em sua faltas e impedimentos, por um Promotor de Justiça da Capital, mediante designação do Procurador Geral do Estado.
Este diploma legal, como se observa, embora mantendo o isolamento do cargo, inovou em diversos aspectos em relação ao anterior, conquanto estabeleceu ser o Promotor de Justiça Militar um órgão auxiliar da Auditoria Militar, previu sua substituição em caso de falta e impedimento por um Promotor de Justiça da Capital, por ato do Procurador Geral do Estado, bem como erigiu subordinação administrativa, tanto do Auditor Militar quanto do Promotor de Justiça Militar, ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, conforme se vê do art. 24 da lei citada, verbis:
Art. 24 – O Auditor, o Promotor e os Advogados da Justiça Militar, administrativamente, são subordinados ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado.
À propósito, faço ligeira digressão para observar que alguns Promotores de Justiça, novos e antigos na carreira, esquecem (a lembrança efetivamente não é agradável, mas inarredável da história institucional) que nossos antecessores integravam a Procuradoria Geral do Estado, de onde recebiam nomeação e comando administrativo, notadamente designações. Naquele contexto histórico não tão distante, historicamente falando, configurou-se 'grande avanço' quando o Procurador-Geral de Justiça recebeu o status de Secretário de Estado, sendo-lhe permitido despachar 'diretamente' com o Governador do Estado o expediente do Ministério Público e da Procuradoria Geral de Justiça.
Mas, voltemos ao tema.
DA RECEPÇÃO DAS NORMAS CITADAS PELA LEGISLAÇÃO ORDINÁRA RELATIVA AO MINISTÉRIO PÚBLICO
O primeiro Código do Ministério Público do Ceará, de iniciativa do Poder Executivo, Lei n° 7.052, de 26 de dezembro de 1963, dispôs em seu Capítulo XI, verbis:
Art. 59 – O Ministério Público Militar será exercido por um Promotor, que funcionará junto à Auditoria Militar do Estado e seus Conselhos de Justiça, observando prescrições legais, inclusive as do Código da Justiça Militar, no que for aplicável.
Art. 60 – O Promotor da Justiça Militar do Estado, cujas férias e licenças serão concedidas pelo Procurador Geral do Estado, será substituído, nesses casos e nos seus impedimentos, por um Promotor de Justiça Auxiliar.
Art. 61 – O cargo de Promotor da Justiça Militar do Estado é isolado, de provimento efetivo e nomeação do Chefe do Poder Executivo, privativo de bacharel ou doutor em direito, definitivamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil.
Parágrafo único – O Promotor da Justiça Militar toma posse perante o chefe do Ministério Público Estadual, feita sua matrícula na Secretaria da Procuradoria Geral do Estado.
Art. 62 – As garantias, incompatibilidades, suspeições e penas disciplinares referentes ao Promotor da Justiça Militar regem-se por leis especiais, aplicando-se subsidiariamente, as normas dêste Código”.
Inegável que o art. 61 repete, quase literalmente, o art. 11 da Lei n° 5.520/61.
O atual Código do Ministério Público do Estado do Ceará, Lei n° 10.675, de 08 de julho de 1982, dispõe, litteris:
Art. 254 - Os Subprocuradores, Corregedores e Curadores, em inatividade, terão os seus proventos iguais aos vencimentos dos Procuradores de Justiça, cujo valor é de Cr$ 166.695,00 (cento e sessenta e seis mil, seiscentos e noventa e cinco cruzeiros) mensais.
Parágrafo Único - O atual ocupante do cargo de Promotor de Justiça Militar terá seus vencimentos iguais aos de Promotor de Justiça, de entrância especial, e será considerado como de efetivo exercício na mesma entrância o tempo de serviço prestado como Promotor de Justiça Militar.
DA RECEPÇÃO DAS MESMAS NORMAS PELA LEGISLAÇÃO CONSTITUCIONAL
O legislador constitucional estadual de 1989 optou por retirar o cargo de Promotor de Justiça Militar do seu “isolamento” em relação ao Ministério Público, acolhendo-o na instituição, conforme se observa no art. 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, verbis:
Art. 14. O cargo de Promotor de Justiça Militar passa a integrar a carreira do Ministério Público, de entrância especial, com a denominação de Promotor de Justiça Militar.
Parágrafo único. O atual ocupante do cargo de que trata este artigo passa a integrar o Ministério Público, com o tempo de serviço exercido no citado cargo.
Com efeito, a Constituição Estadual - que não inovou em relação ao aproveitamento do tempo de serviço, posto que repetiu a regra que já se encontrava inserta no Código do Ministério Público, isto é necessário frisar - corrigiu uma distorção histórica, vez que exsurgia incompreensível, senão desprovida de razões de qualquer ordem, a manutenção de um órgão encarregado da persecução penal militar, e como tal privativo do Ministério Público, “isolado” da instituição ministerial ou sob o comando administrativo do Poder Executivo ou Judiciário.
Cumpre observar que também a Constituição Federal adotou a mesma solução em relação aos Procuradores da Justiça Militar que houvessem adquirido estabilidade à época de sua edição, segundo se observa no art. 29 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, verbis:
Art. 29 - Enquanto não aprovadas as leis complementares relativas ao Ministério Público e à Advocacia-Geral da União, o Ministério Público Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, as Consultorias Jurídicas dos Ministérios, as Procuradorias e Departamentos Jurídicos de autarquias federais com representação própria e os membros das Procuradorias das Universidades fundacionais públicas continuarão a exercer suas atividades na área das respectivas atribuições.
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§ 4º - Os atuais integrantes do quadro suplementar dos Ministérios Públicos do Trabalho e Militar que tenham adquirido estabilidade nessas funções passam a integrar o quadro da respectiva carreira.
Embora correndo o risco de discorrer sobre o óbvio, é imperativo dizer que, quando a Constituição Federal menciona que os integrantes do quadro suplementar dos Ministérios Públicos do Trabalho e Militar que tenham adquirido estabilidade nas funções passam a integrar o quadro da respectiva carreira, está a referir-se a integrantes não-concursados, isto por razões igualmente óbvias. Em situação oposta encontram-se os integrantes das citadas carreiras que adquiriram vitaliciedade, para os quais naturalmente não existe razão a justificar o dispositivo.
Ademais, a estabilidade no caso referenciado, de servidores não-concursados, por encontrarem-se em exercício na data da promulgação da constituição, há pelo menos cinco anos continuados, decorre de dispositivo da própria Constituição Federal (art. 19 do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias).
CONCLUSÃO
A Constituição do Estado do Ceará, ao disciplinar que o cargo de Promotor de Justiça Militar passa a integrar o quadro do Ministério Público do Estado, não criou o dito cargo, pois o mesmo já existia desde o longínquo ano de 1922. Simplesmente corrigiu a histórica distorção da legislação (para não dizer absurdo), que mantinha o cargo de Promotor de Justiça Militar como de provimento “isolado”, situado no âmbito do Poder Executivo, com subordinação administrativa ao Presidente do Tribunal de Justiça, vinculado ao Ministério Público apenas para efeito de substituição em casos de impedimentos, suspeições e férias.
A situação administrativa híbrida do cargo de Promotor de Justiça Militar antes da Constituição Estadual era inaceitável e desprovida de razões de qualquer ordem. O jus acusatione perante a Auditoria da Justiça Militar Estadual é atividade que somente se compatibiliza com as atribuições conferidas ao Ministério Público Estadual pela Constituição Federal, com destaque para a exclusiva titularidade da ação penal pública.
O cargo de Promotor de Justiça Militar integra o quadro do Ministério Público estadual, por força do disposto no art. 14 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição do Ceará, fazendo jus o seu atual ocupante ao aproveitamento de todo o tempo de serviço exercido no citado cargo, considerado como de entrância especial.